Importância do culto de caboclo nas religiões Afro-Brasileiras
- Ọmọ Fiptab
- 14 de jul. de 2023
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Atualizado: 15 de out. de 2023
Na década de 1930, discussões sobre pureza e hibridismo nas religiões afro brasileiras estavam efervescentes. A elevação do culto nagô ao patamar de “mais puro” ou “mais africano” tinha lugar garantido nos estudos desde o pioneiro Nina Rodrigues, assim como o movimento de alguns indivíduos que se dirigiam ao continente africano em busca de elementos para promover uma africanização – e consequente purificação – de seus cultos no Brasil.

Edison Carneiro, em 1937 foi o primeiro pesquisador dedicado às religiões negras que passou a dar atenção aos terreiros bantos. Afirmava que, apesar de haver naquele momento um consenso de que as religiões de herança jeje e nagô fossem o foco dos estudos, os candomblés de caboclo eram “ricos de sugestões para o estudioso da etnografia afro-brasileira” (CARNEIRO, 1991, p. 128-129).
Carneiro considerava que os candomblés de caboclo eram “resultado de uma fusão da mitologia dos negros bantos, já contaminada por influências jeje-nagôs e malês, com a mitologia dos selvagens da América Portuguesa” (CARNEIRO, 1991, p. 133).
Por volta da virada do século XIX para o XX, os yoruba passaram ser reconhecidos internacionalmente como um povo culto e orgulhoso, possuidores de uma religião sofisticada e que não se rendeu ao colonialismo. Esse conceito de grandeza se espraiou através do atlântico negro e aparentemente se tornou uma bandeira para aqueles que buscavam uma pretensa pureza africana da cultura negra na diáspora (Matory, 2005, p. 126, e 1999, p.72-103). Além de estabelecer o conselho de Obás, Mãe Aninha consagrou Oxalá como o orixá da pureza, e seus rituais de limpeza coletiva como uma das cerimônias mais importantes da liturgia do candomblé, ao mesmo tempo em que excluiu do culto os caboclos, considerados divindades híbridas.
à medida em que os terreiros buscavam um ideal de pureza, se distanciavam cada vez mais do culto a caboclo – o que implica em aceitar que mesmo as casas nagôs cultuavam essas entidades, ainda que discretamente. Para Edison Carneiro, os candomblés de caboclo se tratavam de “formas religiosas em franca decomposição”, e embora esses “elementos estranhos” – no caso, os caboclos – fossem imbuídos de fundo igualmente mágico, causavam a paulatina degradação do culto (CARNEIRO, 1991, p. 136). Naquele momento, um dos requisitos mais importantes para legitimar um terreiro era a ligação direta com ascendentes africanos, ainda que o culto a caboclo acontecesse em muitos desses terreiros, porém de forma discreta, e essa prática se perpetuou ao longo dos anos. Edison Carneiro relatou que “[...] no Engenho Velho e no Gantois, duas casas onde a tradição ketu exerce uma verdadeira tirania, pude ver cantar e dançar para encantados caboclos” (CARNEIRO, [s.d.], p. 62).
Nicolau Parés (2006) sugere que a reivindicação por uma ascendência africana por parte de terreiros que tinham condições de reclamar uma fundação histórica – como era o caso do Gantois, por exemplo - tenha sido reforçada no período imediato ao Pós-Abolição, quando a grande maioria da população negra era crioula, e os velhos africanos foram progressivamente desaparecendo. Ter um culto “africano” ou “nagô puro” era um capital simbólico para enfrentar a concorrência com os terreiros de fundação recente. Em um tempo onde a valorização dos terreiros estava ligada diretamente à ascendência africana, um candomblé que cultuasse caboclos estava fadado à condição de ser menos legítimo ou mais “misturado”. Essas entidades brasileiras, relacionadas inicialmente com antigos chefes indígenas, mas que também abarcavam outros tipos de espíritos, como boiadeiros, turcos e ciganos, colocavam em cheque a necessidade premente da iniciação, colocando em risco a autoridade rotineira e os requisitos básicos para a fundação de um terreiro (MATORY, 2005, p. 30- 31).
Para o antropólogo Jocélio Teles dos Santos, a presença dos caboclos no candomblé, mesmo em terreiros de origem nagô, não deve ser encarada como uma fusão entre grupos africanos e indígenas, uma vez que considera esse culto uma representação simbólica do que seria a cultura indígena, a partir da visão dos adeptos das religiões afro-brasileiras, descartando portanto a visão de que tal fenômeno se trate de um “sincretismo afro-ameríndio” (SANTOS, 1995, p. 13). A recente bibliografia africanista tem mostrado que a participação dos povos da África Central Ocidental, ao contrário, pode ter sido muito mais efetiva do que se supõe até o momento.
O antropólogo John Janzen (1982, 1992) demonstrou que muitas sociedades centro-africanas partilham um princípio cosmológico comum, onde o mundo se divide entre dois pólos (o mundo dos vivos e o mundo dos espíritos), e o equilíbrio entre esses dois mundos é que determina o bem estar da comunidade. Para prover esse equilíbrio necessário, realizam ritos coletivos, denominados por ele de “cultos de aflição” ou, ainda, “tambores de aflição”, que têm a música e a dança como elementos capazes de promover a fruição. Nesses cultos, os espíritos territoriais eram invocados, em detrimento aos espíritos ancestrais, uma vez que os primeiros fossem mais “eficientes” para ajudar no âmbito em questão. Relatos sobre esses rituais praticados no século XVII, ou na transição do século XIX para o XX, mostraram que muitas características essenciais se mantiveram ao longo do tempo, como a realização das reuniões em clareiras escondidas na floresta, onde estavam depositados os altares e objetos rituais. Nessas sociedades, era comum a participação tanto de homens quanto de mulheres, inclusive assumindo papéis sacerdotais.
No campo da história, Robert Slenes identificou similaridades entre os chamados cultos de aflição e algumas práticas religiosas coletivas presentes no Sudeste brasileiro, localizados em momentos e locais distintos, entre o século XIX e na virada para o século XX (em Vassouras, 1848, São Roque, 1854, e a Cabula, em São Mateus, no Espírito Santo, 1900). Analisando esses cultos que englobavam escravos e pessoas livres, Slenes demonstrou que entre eles havia em comum um parentesco com os cultos comunitários fartamente documentados nas fontes centro-africanas, e levantamos aqui a hipótese de que o culto a caboclo, inicialmente na Bahia e, posteriormente, no sudeste, também tenha lugar nesse parentesco (SLENES, 2007a, 2007b). A esse respeito, Robert Slenes sugere que [...] No Brasil, os caboclos, quando se apossam de pessoas em rituais de transe, geralmente são espíritos fortes, toscos, belicosos – iguais a certas almas ancestrais antigas, também transformadas em espíritos territoriais, dos povos Kongo. Curiosamente, a figura do caboclo, geralmente considerada no Brasil (agora com mais propriedade ainda) como evidência de forte interação entre africanos e ameríndios, é também, às vezes, criticada como uma manifestação cultural “impura” que não segue as matrizes de uma sensibilidade africana. Ora, para os centro-africanos, não existiria nada mais “puro”, mais fiel aos princípios das expansões bantu dos últimos seis mil anos, do que o espírito caboclo (MENDES, 2014, p. 16). O argumento de Slenes é reforçado pelos recentes estudos da historiadora Kairn Klieman (2003, 2007), que investigou práticas religiosas durante a expansão bantu. Os grupos migrantes, ao chegar em terras alheias, tinham a preocupação em identificar os espíritos que “chegaram primeiro” naquela terra, e recorriam aos sacerdotes locais para aprender os métodos de abordagem e culto a tais espíritos, que eram reconhecidos como “donos da terra” – como vimos anteriormente, a mesma expressão utilizada pelos praticantes do candomblé para fazer referência aos espíritos caboclos.
Dessa maneira, observamos que o culto a caboclo, mais do que um dos grandes pontos de desconcerto e condição básica para dividir os terreiros entre “puros” e “impuros”, pode ser a chave para a compreensão sobre possíveis contribuições centro- africanas na formação do candomblé, para além dos muros dos terreiros angola- kongo. Dentro da lógica imposta, onde a ligação com práticas africanas é que legitimavam as casas de culto, Joãozinho poderia ser considerado um autêntico representante de práticas centro-africanas, ainda que ressignificadas ao longo do tempo, no que tange à estruturação de seu próprio terreiro.
TEXTO FONTE: Mendes, Andrea CANDOMBLÉ ANGOLA E O CULTO A CABOCLO: DE COMO JOÃO DA PEDRA PRETA SE TORNOU O REI NAGÔ. Periferia. 2014;6(2):120-138.[fecha de Consulta 15 de Septiembre de 2022]. ISSN: . Disponible en: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=552156370009
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